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27 de jun. de 2008

HOMENAGEM AO CADÁVER DESCONHECIDO

CADÁVER DESCONHECIDO
(Publicado anteriormente no Jornal de Hoje)
Juarez Chagas
Muitas homenages têm sido prestadas ao Cadáver Desconhecido em todo o mundo. Universidades, Instituiçoes acadêmicas, segmentos da sociedade científica e religiosa têm demonstrado através de atos públicos e oficiais seus gratos e humanos reconhecimentos a esse personagem anônimo, milenar e mito, que foi o pilar da anatomia humana, a qual nos primórdios, foi a base da medicina, sem o qual não teria evoluído, o que ocorreu graças a ousadia e bravura de Vesalius, o primeiro anatomista realmente a ter tirado o CD do submundo da obscuridade, para transformá-lo na mais importante descoberta da máquina humana, como bem descreve em seu De Humani Corporis Fabrica, 1543.
Portanto, é com satisfação que, nao somente pelos estudos e dedicação a que tenho me envolvido nesse tema de grande desenvolvimento humano, mas também em reconhecimento à importância de seu valor acadêmico e humano, na sua forma incomum porém valorosa de nos dar verdadeiras liçoes de vida, reverencio também o mais importante personagem da anatomia humana, ao longo de todos os tempos.

Ao Cadáver Desconhecido
( O Autor)

Um dia, como você, vim ao mundo
Não foi, como nas famílias normais
Onde, ao nascer, todos riem, apenas a criança chora
No meu caso, talvez, todos tenham chorado
Apenas eu ria
Se nasci numa palhoça, casebre ou maternidade
Nunca soube, não me contaram
Ou se contaram, não dei atenção
Estava muito disperso
Ocupado com o nada (mas querendo tudo)
Envolvido com as armações da vida

Cresci e vivi como um andarilho
Sem família, sem lar, sem amigos
Como um ladrão ou como um assassino
Mas,o que eu sempre quis ser mesmo foi um Hobin Hood
Um paladino, um zorro, um justiceiro
Porém, quando quis voltar à realidade foi tarde demais
Já não havia mais como negociar com a paz
E só pude ocupar o único lugar que a sociedade reserva para os omissos,
os miseráveis e marginalizados: o submundo

Como morri, não importa
Talvez, nem eu mesmo saiba como foi, nem o dia, nem a hora
O fato é que aí, na mesa fria de mármore, está o meu corpo
Sobre cujo peito não se derramou uma só lágrima de saudade
Sobre cujo rosto ninguém deu um beijo de adeus
Também, meus olhos não viram a luz da vela
Que iluminaria a passagem para o outro mundo
Nem tão pouco foram cerrados após a partida, na hora de ir embora
Minhas mãos não foram afagadas, na despedida sem retorno
Sobre meu corpo semi-nu
Também não puseram roupas ou sequer um lençol branco

Ao contrário, talvez tenha ficado jogado ao relento
Sob o sol quente do dia e o frio da noite
Velado apenas pelo vento, a chuva, os insetos
Talvez pisoteado, chutado, esfacelado ou mutilado
Quando fui, finalmente (ou propositalmente), encontrado
Como um animal moribundo e relegado
Agora digo a todos vocês através deste silêncio profundo e eterno
Através deste corpo inerte, inanimado
Está minha última redenção
Paguei pelo que na terra fiz ou deixei de fazer

E como nunca é tarde para ser útil
Usem pois, este corpo inerte sobre a lousa
Dissequem cada estrutura, conscientemente
Rebatam as aponeuroses, fáscias e músculos
E vejam como é lindo e fantástico o corpo humano
(Coisa que nunca tive oportunidade de entender em vida)
Sintetizem a Anatomia, na prática
Meditem, questionem, busquem o entendimento topográfico e sistêmico

Se meus olhos ainda forem úteis
Dêem suas córneas a alguém que nunca viu a luz do dia
Dissequem meu coração com paciência e mestria
De tal forma que, quando doutores possam salvar
Muitas vidas, impedindo os infartos e embolias
Extirpem meus pulmões
Descobrindo o percurso de suas árvores brônquicas
E aprendam a anatomia pulmonar
Para que no futuro possam salvar tuberculosos e enfizematosos
Percorram e estudem os rins demoradamente
Para que possam entender, no futuro sua fisiologia e curar os nefropatas

Estudem , a pele, os ossos, os músculos, as vísceras
Verifiquem e compreendam, calmamente, o sistema nervoso
E imaginem que a mente e o espírito
Certamente também residem ali

Enfim, estudem todas as suas estruturas orgânicas
(mesmo que não haja tempo, pois o tempo é cada um que faz)
E me façam seu PRIMEIRO PACIENTE
Sem medo de cometer nenhum erro ou acidente
Mas, com a obstinação do acerto
Assim sendo,
Após vários anos de estudo, determinação e um juramento hipocrático e sagrado
O médico, aquela figura de branco, austera e bondosa
Ao tratar seus pacientes
Dentre seus conhecimentos adquiridos, sempre carregará consigo
Os ensinamentos do Cadáver Desconhecido
(ensinando sobre a vida através da morte)
Que doou seu corpo em prol da humanidade
Que nada lhe deu em troca.

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