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26 de jun. de 2008

O CADÁVER DESCONHECIDO


O Cadáver Desconhecido (II)
(Publicado anteriormente no Jornal de Hoje)
Juarez Chagas

Muita coisa ainda poderia ser dita sobre o cadáver desconhecido. Mas, comentarei apenas dois ou três fatos importantes e relevantes, principalmente, para quem tem acompanhado os artigos e estudos sobre a morte. Como vimos no artigo anterior, Vesalius foi o primeiro a ousar dissecar o corpo humano, publicamente (cuja gravura aparece no fundo, na parede do anatômico, na foto ao lado). Ele sabia que o clero se curvaria às suas evidencias cientificas sobre o conhecimento do corpo humano, sem desafiar Deus. Isso, porque eles, além das rezas, precisavam também dos benefícios do conhecido do corpo humano. Mas, isso não ocorreu assim da noite para o dia. Os anos entre 1540 e 1555 foram decisivos e vitais para a ciência médica, pois a partir daí houve uma grande cisão entre a Igreja e a ciência médica (isso sem contar que Da Vinci, já por volta de 1511 dissecara cadáveres roubados para o estudo de sua perfeita anatomia transportada para suas telas. O Homem Vitruviano é a maior prova disso).

Como já se sabe, a dissecação de cadáveres humanos não só era proibida pela Igreja e autoridades governamentais, como punido era quem fosse apanhado dissecando corpos humanos post mortem, pois tal violação do corpo, após a morte era punida também com a própria morte, geralmente em praça publica. A lei era clara: os mortos deveriam ser chorados, velados e enterrados, independentemente de classe social. Foi isso que aconteceu com Miguel Servetus (nascido na Espanha e, cuja formação inicial era, ironicamente, teológica), por exigência da inquisição, tendo sido queimado em praça publica, juntamente com seus livros e tratados de anatomia. Por isso, passou a ser conhecido como o mártir da ciência. Mas, a ciência não podia parar e, movidos pelo ímpeto e desejo de aprender e desmistificar o proibido em prol do desenvolvimento da ciência, os anatomistas não se davam por vencidos. Além do mais, estavam vivendo os tempos da Renascença, o maior momento e movimento revolucionários da humanidade.

Assim, era comum os grupos de anatomistas se organizarem (normalmente formados por médicos e discípulos avançados) para estabelecerem dia, local e hora onde deveriam se encontrar para as proibidas dissecações noturnas que normalmente eram feitas em calabouços ou subterrâneos, à luz de vela ou lampiões de fogo.
Conta a história da anatomia que existia um código e uma senha entre eles e que um mensageiro especial avisava cedo do dia, passando secretamente na casa de cada um dos dissecadores, dizendo apenas a seguinte frase: care data vermis, o que significava dizer que à noite haveria dissecação. A frase em Latim significava que depois de dissecado, os restos mortais eram atirados aos vermes ou sumariamente enterrados após os estudos. Acredita-se, portanto, que a palavra cadáver tenha surgido da junção das primeiras silabas dessas três palavras, portanto simbolizando até hoje o Cadáver Desconhecido, não apenas como material de estudo da Anatomia, mas constituindo-se também numa personagem eterna para a ciência e medicina, especialmente.
As dissecações de Andréas Vesalius não só marcaram o mais fértil período da anatomia e definição da medicina, como também oficializou a figura simbólica e indispensável do cadáver desconhecido para o estudo da anatomia humana em todo o mundo. Nascia a ciência definitiva do corpo humano, mesmo que contemplada pela morte, mas para o bem da vida, uma aparente contradição que muitos demorariam a entender.

Dando continuidade aos estudos sobre a morte, em 1998, tive a grata surpresa de ter o trabalho “Cadáver Desconhecido–Lições Eternas de Anatomia”, contemplado com Menção Honrosa, concedida pela conceituada PUC do RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), obtido através do concurso nacional do Premio Professor Garcia do Prado de Anatomia Humana, onde apenas trabalhos de pesquisas e monografias na área médica foram premiados. Este trabalho faz um histórico sobre o cadáver desconhecido e a evolução da Anatomia, inclusive no Brasil e, conseqüentemente, apesar de simples, tornou-se um grande estimulo para o prosseguimento de estudos sobre a morte. Logo em seguida, após seleção de Mestrado na EPM-Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), apresentei a tese intitulada “Cadáver Desconhecido – Importância Histórica e Acadêmica para o Estudo da Anatomia Humana”, onde estudos mais profundos e pesquisas bibliográficas especificas foram trabalhadas. Tomei conhecimento de que a tese sobre este assunto foi pioneira no Brasil, no que diz respeito ao caráter filosófico sobre o tema em uma das Universidades mais importantes do Brasil.

Como podemos ver, apesar da moderna tecnologia ter tentado substituir o cadáver humano para estudos anatômicos, por modelos de plástico, ressurgiu recentemente nas mais importantes universidades do mundo, novamente a questão sobre a manutenção e controvéersias sobre a opção pela continuação da dissecação do corpo humano, através do cadáver desconhecido. Sabemos que nenhuma tecnologia substitui a maquina humana e a bela, extraordinária e imprescindível lição e conhecimento que ela nos proporciona.
Afinal, quem, se necessário fosse, teria dúvidas em ser cirurgiado e tratado por um medico que tenha dissecado o corpo humano ou por alguém que “aprendeu” anatomia em modelos de plástico ou borracha sintética? A diferença entre os dois conhecimentos é absolutamente inquestionável.

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